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Contrariamente ao que se possa supor, a concepção de 'literatura menor', tal como nos é apresentada por Deleuze & Guattari (2013), não contempla uma forma literária de menos prestígio. 'Menor' é a literatura que emerge com força de potência capaz de abalar as estruturas de um modelo literário imposto como maior. Nesse sentido, atribuir a Kafka uma leitura que perpasse essa perspectiva é reconhecer o carácter de desterritorialização de seus feitos. A relação do autor com a língua é uma forma interessante de ilustrar isso: na impossibilidade de escrever em outra língua que não fosse o alemão, conforme posto aos judeus de Praga, o que resulta é uma língua desterritorializada, tão política quanto o modelo literário que essa produz. Além do mais, as personagens que transitam pelo universo kafkiano nos dão pistas do compromisso com o social, tão presente no que é literário e 'menor', seja pela denúncia ao excesso de burocracia que pune cidadãos comuns, seja pela figura paterna constantemente representada como autoritária. Nessa continuidade, há ainda a menção à relação conflituosa que o autor manteve com seu pai, a qual lhe rendeu uma carta, publicada no ano de 1919, sob o título "Brief an den Vater" ["Carta ao pai"], e cujo intuito era tornar o pai ciente do peso negativo de suas ações sobre a vida dos filhos. Essa obra norteará nosso trabalho, enquanto objeto de análise, sobretudo porque a partir dela podemos enxergar a transição do autor de Édipo neurótico a Édipo perverso, em consonância com as contribuições de Lacan, além da riqueza de elementos contida nela, que nos permite desenvolver sobre a homofonia entre o 'Nom du Père'/'Non du Père',a representação do "não" do pai foucaultiano.
Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir a tradução do texto "Die Lesung" (In: HELMINGER, Guy, 2001, p. 84 a 95), que esteve dentre os contos traduzidos pela autora na prática de "Estágio Supervisionado do Alemão I". Guy Helminger, o escritor traduzido, é luxemburguês de nascença e cosmopolita de profissão. De suas viagens e estadas pelo mundo, publicou, entre outras obras, "Die Allee der Zähne: Aufzeichnungen und Fotos aus Iran" (2018) e "Die Lehmbauten des Lichts: Aufzeichnungen und Fotos aus dem Jemen" (2019). "Rost", um de seus livros de contos, teve a primeira edição publicada em 2001, agraciada pelo Prix Servais em 2002, e a reedição publicada em 2016 (CAPYBARABOOKS e CONTER E JACOBY (200[2?])). "Die Lesung" ("A sessão de leitura") compõe a segunda parte do livro, que é dividido em três. O conto narra em onze agoniantes páginas as peripécias enfrentadas por Robert Fritzen em uma sessão de 'leitura de obra pelo próprio autor'. Impressionado pelo estofamento das cadeiras ou distraído por tossidas e fios de cabelo, Fritzen é engolido por neuras. Se o texto deve qualquer parte do seu valor estético à irritação que pode/tenta causar no leitor, traduzi-lo esteve, pelo contrário, longe de ser irritante: Helminger apresenta um texto desfrutável, mesmo sem contar com nenhum acontecimento trágico (como nos demais textos do livro). Dentre as dificuldades de tradução, se destaca o desfio de manter a linguagem realista, como caracteriza Weidner (2002), na descrição de eventos que beiram o surrealismo - ou a loucura.
Ao formular as três etapas do destino histórico do Ocidente em "Cristandade ou Europa", Novalis oferece a promessa de uma síntese futura entre a Idade Média e o Iluminismo na figura do erudito alemão romântico. Nele, o entusiasmo científico e filosófico irá ao encontro do arrebatamento místico e poético, em vez de o combater. Ele reconciliará arte e ciência, mundo sensível e espiritual, natureza e história, sagrado e profano. Já no romance "Os discípulos de Sais" há uma série de correlações vertiginosas entre natureza, espírito, corpo e história que não podem ser feitas por um cientista. Só podem ser geradas pelo poeta, o único que compreende o sentido da natureza. O artigo pretende mostrar o quanto o ideal de reencantamento dos dois livros está ligado ao saber analógico renascentista que, segundo Hartmut Böhme, introduz uma semiologia da natureza baseada em vínculos de semelhança entre as coisas. Se, na Renascença, é o filósofo natural que decifra a assinatura das coisas, em Novalis é o poeta que faz da linguagem a chave do reencantamento e da liberdade. O artigo termina refletindo sobre o conflito entre ilusão e realidade na poesia moderna.
Filipe Melanchthon é uma das figuras proeminentes na Reforma e no Humanismo renascentista alemães, embora no Brasil esta segunda característica não seja muito bem conhecida. Sua obra como um todo tem uma base teológica com a qual ele pretendia também favorecer os estudos acadêmicos, principalmente, mas não só, no que hoje é chamado de Ciências Humanas. O presente texto mostra como ele utilizou a distinção teológica entre lei e evangelho para configurar o espaço das então assim chamadas 'artes' na universidade pré-moderna alemã tardia. A ênfase aqui está nos estudos literários e linguísticos e na abordagem ética deles, favorecida por ele.
Este artigo propõe-se a analisar a trajetória do escritor austríaco Fritz Kalmar e seu conto "Der Austrospinner" ("O austro-louco"), incluído na antologia "Das Herz europaschwer", de 1997, à luz das identidades surgidas no contexto da emancipação e da assimilação judaicas na Áustria. Georg von Winternitz, protagonista desta narrativa, encarna, em seu exílio boliviano, os fundamentos de uma identidade austríaca cultivada na velha Monarquia Habsburga, legatária do Sacro Império Romano Germânico, e organiza sua existência no novo país de acordo com valores éticos e com princípios católicos, humanistas e universalistas, cultivados, sobretudo, por literatos austríacos do fim do século XIX e do início do século XX, que se dedicaram à construção da identidade imperial austríaca. Esse sistema de valores, particularmente caro aos judeus austríacos da época do Kaiser Franz Josef, revela uma surpreendente sobrevida nos Andes bolivianos depois de 1938. Ao adotar um menino indígena que está em vias de tornar-se um ladrão, esse personagem não só pretende educá-lo como, sobretudo, pretende fazer dele "um austríaco", o que significa, para o personagem, nele instilar um sistema de valores vinculado à extinta Áustria imperial. A discussão sobre esse conceito, "o austríaco", presente na literatura austríaca do século XIX e do início do século XX, é trazida à tona para tentar compreender o que se encontra por trás deste projeto. Para além dessa questão surge, ao longo da narrativa, uma alusão ao fato de que tanto o narrador quanto o protagonista da narrativa são descendentes de judeus que também "se tornaram" austríacos. "Tornar-se austríaco", assim, e com isto o conceito de 'gelernter Österreicher', temas inextricavelmente ligados ao processo de emancipação e assimilação judaica na Áustria do século XIX, são questões que ressurgem, de forma distópica e anacrônica, na Bolívia dos anos 1950, na trajetória de Kalmar tanto quanto na de seu personagem.
Hans Keilson faz parte do numeroso grupo de escritores de língua alemã que publicou entre as décadas de 1930 e 1950 obras sobre a Segunda Guerra Mundial e temas tangentes. Reconhecido tardiamente, Keilson escreveu romances, autobiografia e ensaios em que se confundem suas experiências, seu conhecimento técnico como psicanalista e a ficção. Neste artigo propomos uma leitura da novela "Comédia em tom menor" ("Komödie in Moll"), destacando a empatia como chave fundamental para leitura da obra, a focalização como expediente narrativo para alcançá-la, e a presença de elementos cômicos imiscuídos à realidade grave e por vezes trágica que é construída no conto.
Experiências migrantes, embora distintas, são geralmente acompanhadas de uma sensação de exílio e ainda que seja comum pensar o exílio como uma condição político-geográfica, na qual o sujeito é ou se vê obrigado a permanecer distante do seu lar e das suas origens, ele pode, na verdade, assumir outras formas. Entre estas, é possível citar o exílio físico - quando o sujeito, independente da sua localização espacial, sente-se exilado em função do seu gênero ou da sua etnia, por exemplo. Outra forma de exílio é o exílio linguístico - quando o sujeito se encontra em uma situação na qual escolhe - ou, por alguma razão, precisa - produzir e se comunicar em uma língua que não a sua primeira. Comum a todas as formas de exílio está a estreita ligação que estabelecem com a noção de hospitalidade e também com a noção de exofonia, que se relaciona à escrita de autores que vêm de todas as partes do mundo e, ao mesmo tempo, não pertencem a lugar nenhum e que são levados a escrever em outras línguas, além da sua primeira. A escrita exofônica evidencia um deslocamento que é sim político e geográfico, mas é ainda ‒ ou ainda mais que isso ‒ linguístico, textual, identitário, inserindo esses autores no que Ottmar Ette (2005) denomina literatura sem morada fixa ['Literatur ohne festen Wohnsitz']. A partir da análise do conto "Ein Gast" ["Um hóspede"] - obra de Yoko Tawada, na qual a protagonista japonesa vivencia uma série de estranhamentos em relação ao outro alemão, evidenciando o caráter central das noções de exílio e hospitalidade -, serão analisadas e discutidas a íntima relação entre essas noções bem como a centralidade do papel que a exofonia desempenha nessa dinâmica. Essa análise será realizada com base as reflexões teóricas de Jacques Derrida e da própria Yoko Tawada, entre outras.
A emancipação do indivíduo (e, mais precisamente de um tipo específico de indivíduo, a saber, o "burguês") é o principal ponto de convergência entre duas obras da literatura europeia setecentista (seja insular, britânica, seja continental, alemã). São elas: "Robinson Crusoé" (1719), de Daniel Defoe, e "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister" (1795-1796), de Johann Wolfgang von Goethe. Em seu cerne, ambas enfocam a formação do indivíduo por meio do deslocamento geográfico, dizendo respeito não apenas a um processo de desenvolvimento pessoal, interno, mas também a uma dimensão sócio-cultural mais ampla, englobando os avanços da industrialização e as aspirações da sociedade de seu tempo. Juntos, o romance de formação ou "pedagógico" ('Bildungsroman'), bem como a viagem de formação ('Bildungsreisen') se entrecruzam em um ponto onde o sujeito burguês busca se afirmar em uma sociedade cada vez mais competitiva, desigual, em que o o indivíduo precisa descobrir a si mesmo (saindo de seu meio, ressalte-se), na busca do alcance de uma formação pessoal - seja para se coadunar com o que a nova sociedade industrial em ascensão espera dele ou para conseguir se opor aos valores dela. Tal tensão, no caso de Goethe, é evidenciada por meio da oposição do protagonista, Wilhelm (o burguês que busca seguir as próprias aptidões, independentemente do desejo de acúmulo de bens, apoiando-se em uma "ilha humanista" representada por uma sociedade secreta) ou o personagem Werner, o tipo burguês que busca de modo exclusivo o lucro em tudo o que faz. Em suma, tem-se um representante da chamada 'Bildungsbürgertum' (burguesia da cultura) e outro da 'Besitzbürgertum' (burguesia da propriedade), respectivamente. Este último, a propósito, tem suas raízes literárias na figua de Crusoé, cuja popularidade perdura até os dias de hoje. Desse modo, este trabalho busca apresentar de que modo as transformações sociais ocorridas no século XVIII impactaram na tradição literária, representada por meio de dois nomes exponenciais da narrativa de ficção envolvendo formação individual e deslocamento geográfico, contribuindo para uma discussão a respeito do individualismo econômico. Para tanto, buscou-se o aporte teórico de autores como Franco Moretti (2014), Benedict Anderson (2008), Walter Benjamin (2012), Georg Lukács (2009), Thomas Mann (2011) e Ian Watt (2010), que aponta a referida obra de Defoe como responsável por iniciar a tradição do romance como gênero.