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A história da imagem perdida
(2011)
"Ah, a tradução […] exige um coração recto, devoto, fiel, esforçado, temente, […] douto, experimentado e destro. Por isso, tenho para mim que um […] espírito faccioso não é capaz de traduzir com fidelidade." (Lutero) Está sempre presente na mente do tradutor, de forma mais ou menos inconfessada, de forma mais ou menos inconsciente, e muito mais ainda no caso da tradução literária, pois é dela que estamos a falar, uma série de instâncias controladoras que regulam a sua produção como um superego de interesses divergentes. Este superego transforma o seu trabalho numa negociação de decisões drásticas e difíceis que envolvem: (a) a (pseudo) autarcia do texto ou ditadura do original; (b) o sistema de disponibilidades e exigências da língua de chegada; (c) aqueles que consideramos nossos pares, colegas de ofício, constituindo ao mesmo tempo o nosso desafio e a nossa segurança, que sempre temos em mente, mesmo sabendo que nem sempre terão tempo de nos ler, ou aqueles que por imperativo de profissão nos lêem e de quem esperamos a compreensão das nossas opções; (d) por contraponto, os “ím-pares”, eventualmente conhecendo as línguas, outras vezes nem por isso, mas ignorando o que é tradução, ao pensar que esta se resolve com equivalências lexicalizadas e automáticas, desconhecendo também as condições especiais da tradução literária; (e) o público real, a sua capacidade de interpretação e a medida da sua disponibilidade para processar a resistência criativa de um texto; (f) e os editores, com as suas linhas de orientação interna e as exigências que se prendem com o marketing.
Traduzir Günter Grass
(2011)
Lübeck, Dezembro de 2006, reunião dos tradutores de Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a Cebola), de Günter Grass. A reunião é convocada, como já é hábito, pela editora; na verdade, trata-se mais de um convite do autor. Durante uma semana, o livro é percorrido à lupa, página a página, dúvida a dúvida. O autor lê passagens inteiras para que os tradutores escutem a cadência, o tom, e aquela escrita sobretudo visual revela uma poderosa sonoridade. Grass lê de forma magnífica e recorda a importância da leitura em voz alta para a tradução. Alguns trazem o texto já traduzido, numa primeira versão, outros começaram apenas, como eu, que só tinha traduzido quatro capítulos. Alguns, os escandinavos, conhecem-se já há anos, desde o final da década de 1970 que se encontram para estas reuniões. Eu estou ali pela primeira vez.
Traduzir Franz Kafka
(2011)
De facto, a palavra escrita representa para Kafka qualquer coisa de sagrado. Daí, o célebre “aforismo”, “Schreiben als Form des Gebetes”, a “escrita como forma de oração”. Esta escrita “como forma de oração” passou, daí em diante, a representar para mim, como adolescente que era, “a leitura como forma de oração”. A leitura passou a ser para mim algo de especial e, a partir daí, fiz de Kafka e da sua escrita uma espécie de diapasão para o que devia ou não devia ler. Nessa altura, estava ainda longe de pensar que viria alguma vez a traduzir Kafka, muito menos a referida “lenda”. Entre o convite feito pelo falecido editor da Assírio & Alvim, Manuel Hermínio Monteiro, para traduzir o romance “O Processo” e as recordações do meu primeiro contacto com a obra de Kafka mediaram cerca de vinte e cinco anos de convívio quase diário com a obra do autor. Estes longos anos de leitura de Kafka nunca criaram em mim o desejo, nem sequer íntimo e secreto, de o traduzir. Quando, em 1997, subitamente me vi perante um convite para traduzir o romance “O Processo”, a minha primeira reacção foi dizer “não”! E a razão talvez tivesse sido a importância que atribuía àquela escrita singular de Kafka, que, não obstante ser simples e transparente em termos formais, tinha algo que a aproximava da perfeição.
Em 1986, praticamente no início da minha actividade de tradutor, traduzi 'A Marquesa de O…' e 'O terramoto no Chile ' para uma edição conjunta dos dois textos na Editora Antígona. [...] Preocupava-me então sobretudo com a qualidade literária do resultado tradutivo e não tanto com aquilo que hoje penso dever ser a máxima preservação possível dos caracteres funcionais do texto original. […] Nos últimos meses do ano de 2008, dediquei-me ao trabalho de traduzir alguma prosa reflexiva de Heinrich von Kleist, que viria a ser publicada em 2009 pela Editora Antígona num volume intitulado 'Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos'. Entre esses «outros escritos» encontra-se o célebre ensaio «Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso» e também a «Carta de um poeta a outro», publicada por Kleist nos Berliner Abendblätter, em 5 de Janeiro de 1811. Se aqui menciono explicitamente estes dois textos, é porque, a meu ver, como procurei demonstrar na introdução ao volume em causa, eles contribuem decisivamente para uma compreensão da concepção que o autor tem da língua, da linguagem, do discurso, da produção imagética e do estilo literário, o que por sua vez inevitavelmente reverte sobre a tradução da prosa kleistiana. Mais recentemente apresentei à Editora Antígona o projecto de organizar um volume de textos de Heinrich von Kleist que deverá intitular-se 'Prosa Narrativa Completa'. Será um projecto para concluir possivelmente em 2014. Nele deverão incluirse todas as «Novellen» de Kleist, e portanto também novas traduções de 'A Marquesa de O…' e de 'O Terramoto no Chile'. O que apresento adiante é apenas um fragmento de uma das traduções a incluir nesse volume – a do texto 'Der Findling' –, acrescentando à minha tradução alguns comentários sobre certas opções tradutivas que me parecem mais marcadamente decorrentes de especificidades da prosa narrativa kleistiana.